Identidade

Respostas de Movimento Animal no Teste de Rorschach: uma compreensão sobre identificações infantis

A presença de respostas FM sugere demandas (necessidades e desejos)  próprias de uma fase anterior no desenvolvimento infantil, fase esta em que a criança ainda não conseguiu alcançar um amadurecimento psicológico como vistos nas respostas M (movimento humano). Indica que o sujeito que produziu este tipo de resposta ainda encontra-se ligado às fantasias infantis de gratificação ou de frustração, o que confere a estas respostas um caráter mais imaturo. A questão que se coloca, num ponto de vista teórico, é por que as imagens infantis estariam associadas a um universo infantil, indicando, assim, maior imaturidade por parte do sujeito adulto.

Convém observarmos o quanto as crianças apreciam os desenhos infantis ou fábulas. Por que um filme, trazendo a mesma problemática abordada nestes desenhos, não teria o mesmo apelo infantil? Para respondermos a esta questão, temos que considerar o quão complexa é a vida de um adulto. Torna-se muito mais fácil e suportável para a criança identificar-se com o patinho feio e suas rejeições, do que um filme no qual mostraria com maior crueza as dificuldades das crianças.

Os animais figurados em desenhos animados têm reações mais previsíveis e menos complexas. Com efeito, podemos explicar os significados das figuras de animais no teste Rorschach (e também no TAT ou CAT), por meio do processo de identificação,  que nas crianças ocorrem mais facilmente com animais do que com figuras humanas (BELLAK e ABRAMS, 1997).

Os argumentos extraídos da experiência clínica sugerem que relacionamentos afetivos com animais são mais fáceis de  lidar pelas crianças e que os animais são frequentemente menores do que os adultos humanos. Vale ressaltar também que os animais desempenham um papel importante nas fobias infantis e como figuras de identificação em sonhos infantis (ver o caso do pequeno Hans, de Sigmund Freud). Num nível consciente, os animais são vistos como grandes amigos das crianças, o que corrobora com o argumento acima.

Outro fator importante na articulação entre identificação e figuras de animais se assenta na ideia de que animais ofereceriam disfarces mais eficazes em relação a impulsos mais hostis ou agressivos. Estes são mais facilmente atribuídos a um leão do que à figura de um pai, uma vez que este ultimo requer uma identificação mais completa (e mais próximo do que a criança vê em sua casa).

Quando elevadas, as respostas FM podem sugerir um funcionamento mais imaturo, na medida em que as necessidades não satisfeitas não sofrem a ponderação esperada de um adulto. Portanto, ainda no âmbito das identificações, a criança não internalizou a complexidade do existir humano, o que a impede de adiar satisfações, modular afetos e exercer a empatia (característica presente em sujeitos que produzem respostas de Movimento Humano).

Mas será que as identificações com animais, produzidas por um sujeito adulto, encerrariam um modo de ser imaturo, com demandas internas não satisfeitas? Diante da incidência deste tipo de resposta no Rorschach (frequente), um número reduzido é indicativo também de que o universo infantil, espontâneo e criativo ainda pulsa.  Desta forma, torna-se saudável e previsível que um sujeito adulto forneça algumas respostas FM, pois elas também sinalizam aspectos mais espontâneos do universo infantil.

Por estarem associadas a um modo de funcionamento afetivo infantil, as respostas FM sinalizam uma menor integração e adaptação à realidade e menor capacidade de realização, embora apresente consciência do impulso para gratificação imediata (portanto, não sofreu ação maciça da repressão).  Em outras palavras, quanto maior a distância da figura humana, maior a emergência da repressão do desejo e, portanto, de sua consciência. Trata-se de desejos parcialmente reprimidos, uma vez que o movimento animal ainda persiste.

No aspecto mais formal do Rorschach (ideação), os processos ideativos (julgamento e interpretação das experiências internas e externas) são provocados por estados de insatisfação de necessidades básicas, tanto primárias (fome, sede, etc), como secundárias (sucesso, prestígio, etc).  Podemos relacionar estes estados a preocupações ou necessidades não gratificadas. Sua ausência não indica adaptação e saúde psíquica, pois ela pode indicar que o sujeito elimina o registro de tais necessidades. É muito diferente não sentir fome (satisfeita) ou não registrar a fome. Quando aumentado, o sujeito apresenta elevado desconforto interno, vistos por meio da falta de atenção e concentração, devido ao aumento a sobrecarga interna (EXNER e SENDIN, 1999).

Devemos sempre, como examinadores, atentar para os aspectos qualitativos da resposta, cuja análise se dará sobre o tipo de animal visto e o tipo de ação sinestésica (movimento), como por exemplo, “um lobo chorando” ou “uma leoa tricotando”. Ambos receberam uma docilização sobre o aspecto selvagem do animal, o que é indicativo de maiores investigações sobre processos repressivos associados à hostilidade (WEINER, 2000).

Para finalizar, vale a pena ressaltar que, independente da incidência de respostas FM, estamos diante de um sujeito desejante buscando ressignificação de suas demandas internas.

A Empatia na Medida Certa

Não há quem discorde que uma relação mais humana é aquela em que há empatia. No dicionário Houaiss, empatia é descrita como a faculdade de compreender emocionalmente um objeto. No senso comum, trata-se de se “colocar no lugar do outro” para apreender o universo de sentido a partir de uma perspectiva diferente da sua. É isso que falta ao perverso e o que sobra àquele que se perde nas turbulências emocionais do outro. Tudo indica, então, que a saída seria encontrar a justa medida. Como entrar no lugar do outro e não se perder nele? Convém lembrarmos que a empatia só é possível quando nos identificamos com ele. Mas e o inverso? A frieza ou objetividade exacerbada não estaria ligada ao fato de que também nos reconhecemos nesse outro, e talvez justamente por isso criamos esse anteparo? Nestes últimos dois dias percorri estes dilemas através de duas situações cotidianas. Como Psicólogo, minha função é escutar o sofrimento alheio e procurar, na medida do possível, ajudar a pessoa a encontrar sentido onde não há. Nesta semana atendi uma senhora que estava totalmente destruída pelos sintomas que a acometiam. A depressão grave dilacerava aos poucos qualquer recurso resiliente que ela pudesse por em prática. O aprisionamento em que estava aumentava ainda mais seu sentimento de impotência. Seus pensamentos eram desconexos, suas emoções eram descontroladas e o terror a acompanhava durante toda a conversa que procurei desenvolver com ela. Impossível não se deixar tocar por aquele sofrimento. Coloquei-me em seu lugar e por um momento também me senti impotente. Mas tão logo me dei conta disso, voltei para o meu mundo mental e comecei a pensar sobre o que lhe ocorria. Afinal, o que a nossa profissão demanda é pelo menos desenvolver a capacidade de pensar diante de fortes emoções.  A viagem empática fora demasiadamente forte, mas necessária para o desenvolvimento da compaixão. No dia seguinte, estava fumando com um amigo na calçada, quando se aproximou um jovem, com relativa boa aparência, cabelos cortados, procurando ser demasiadamente simpático. Ele nos abordou e perguntou “me dá um cigarro?”. Constrangido pela situação, e por também achar que ele estava alterado, disse “não”. Na hora atuei o incomodo que a abordagem produziu, mas confesso que minha negativa nada teve a ver com alguma preocupação com a saúde do rapaz. Tentei até me convencer desta preocupação social, mas não era o caso. O caso era simples. Não queria dar o cigarro. Meu amigo, muito sensibilizado pela situação (tal qual eu fiquei com o atendimento psicológico) me disse que não havia concedido o cigarro simplesmente por que não o tinha. Lembro-me do rosto do rapaz, desconcertado e excluído continuando o seu caminho. Aí eu me enxerguei nele mas não dava mais tempo. Culpa? Com certeza. Mas a questão principal foi outra. Porque conseguimos desenvolver compaixão por uns e não por outros? O problema é que nos identificamos tanto com aquele que nos despertou interesse, quanto com aquele que desprezamos. Nos vemos nessas pessoas. O problema é que a pessoa excluída nos oferece possibilidade de nos reconhecermos no nosso pior, na nossa fragilidade, na nossa dependência, nos nossos vícios e nas nossas misérias. Voltando a minha pergunta inicial: como atingir a justa medida? Não tenho uma resposta pronta, mas me parece que o caminho é poder reconhecer o que queremos expurgar em nós.Que tanto os que incluímos, quanto os que excluímos, ambos falam sobre nós e para nós. Eu não dei o cigarro ao rapaz, mas ele me proporcionou, juntamente com o meu amigo, esta reflexão. Foi a tragada mais amarga e doce da semana.