Cotidiano

A Empatia na Medida Certa

Não há quem discorde que uma relação mais humana é aquela em que há empatia. No dicionário Houaiss, empatia é descrita como a faculdade de compreender emocionalmente um objeto. No senso comum, trata-se de se “colocar no lugar do outro” para apreender o universo de sentido a partir de uma perspectiva diferente da sua. É isso que falta ao perverso e o que sobra àquele que se perde nas turbulências emocionais do outro. Tudo indica, então, que a saída seria encontrar a justa medida. Como entrar no lugar do outro e não se perder nele? Convém lembrarmos que a empatia só é possível quando nos identificamos com ele. Mas e o inverso? A frieza ou objetividade exacerbada não estaria ligada ao fato de que também nos reconhecemos nesse outro, e talvez justamente por isso criamos esse anteparo? Nestes últimos dois dias percorri estes dilemas através de duas situações cotidianas. Como Psicólogo, minha função é escutar o sofrimento alheio e procurar, na medida do possível, ajudar a pessoa a encontrar sentido onde não há. Nesta semana atendi uma senhora que estava totalmente destruída pelos sintomas que a acometiam. A depressão grave dilacerava aos poucos qualquer recurso resiliente que ela pudesse por em prática. O aprisionamento em que estava aumentava ainda mais seu sentimento de impotência. Seus pensamentos eram desconexos, suas emoções eram descontroladas e o terror a acompanhava durante toda a conversa que procurei desenvolver com ela. Impossível não se deixar tocar por aquele sofrimento. Coloquei-me em seu lugar e por um momento também me senti impotente. Mas tão logo me dei conta disso, voltei para o meu mundo mental e comecei a pensar sobre o que lhe ocorria. Afinal, o que a nossa profissão demanda é pelo menos desenvolver a capacidade de pensar diante de fortes emoções.  A viagem empática fora demasiadamente forte, mas necessária para o desenvolvimento da compaixão. No dia seguinte, estava fumando com um amigo na calçada, quando se aproximou um jovem, com relativa boa aparência, cabelos cortados, procurando ser demasiadamente simpático. Ele nos abordou e perguntou “me dá um cigarro?”. Constrangido pela situação, e por também achar que ele estava alterado, disse “não”. Na hora atuei o incomodo que a abordagem produziu, mas confesso que minha negativa nada teve a ver com alguma preocupação com a saúde do rapaz. Tentei até me convencer desta preocupação social, mas não era o caso. O caso era simples. Não queria dar o cigarro. Meu amigo, muito sensibilizado pela situação (tal qual eu fiquei com o atendimento psicológico) me disse que não havia concedido o cigarro simplesmente por que não o tinha. Lembro-me do rosto do rapaz, desconcertado e excluído continuando o seu caminho. Aí eu me enxerguei nele mas não dava mais tempo. Culpa? Com certeza. Mas a questão principal foi outra. Porque conseguimos desenvolver compaixão por uns e não por outros? O problema é que nos identificamos tanto com aquele que nos despertou interesse, quanto com aquele que desprezamos. Nos vemos nessas pessoas. O problema é que a pessoa excluída nos oferece possibilidade de nos reconhecermos no nosso pior, na nossa fragilidade, na nossa dependência, nos nossos vícios e nas nossas misérias. Voltando a minha pergunta inicial: como atingir a justa medida? Não tenho uma resposta pronta, mas me parece que o caminho é poder reconhecer o que queremos expurgar em nós.Que tanto os que incluímos, quanto os que excluímos, ambos falam sobre nós e para nós. Eu não dei o cigarro ao rapaz, mas ele me proporcionou, juntamente com o meu amigo, esta reflexão. Foi a tragada mais amarga e doce da semana.

É possível viciarmos em certos relacionamentos?

Certa vez vi na televisão uma definição sobre “vício” que me fez pensar e posteriormente concordar: vício é tudo aquilo do qual não conseguimos parar. Fica claro se esta definição for aplicada sobre o uso abusivo de substâncias psicotrópicas, drogas lícitas e ilícitas e jogos. Mas não seria plausível persarmos também que podemos nos viciar em certos tipos de relacionamentos, inclusive aquele que estabelecemos com a gente mesmo? Parece-me que sim.

A maioria das pessoas já deve concordar que todo o vício dá prazer, a despeito dos efeitos nocivos posteriores que ele acarreta. Mas durante o uso de qualquer substancia ou prática, o prazer é conquistado. Nos sentimos outra pessoa e usufruimos da intensidade desta experiência. Mas quando nos referimos a relacionamentos humanos, a situação é um pouco mais complexa.

Por meio do processo de socialização, começamos a construir sentidos sobre o mundo e sobre nós mesmos. Nossas ações ganham significado e a noção de quem somos enquanto pessoa começa a ganhar forma. Ninguém se define sozinho e nosso interlocutor, principalmente àqueles que desenvolvemos certo grau de confiança, assumem um papel importante nesta construção. Porém, ao longo de nossa trajetória, ficamos presos em alguns significados construídos nesses encontros sociais. Passamos a estabelecer relacionamentos com certos tipos de pessoas que irão desempenhar certos papéis. Uma pessoa, que se vê como submissa, passa a querer se relacionar com alguém mais autoritário, mais autônomo. Outra pessoa, cuja imagem que tem de si própria não é satisfatória, pode se vincular a pessoas que venham a enfatizar sua inferioridade. Sei que os exemplos são simples e banais e não daria para esgotar todas as possibilidades aqui. Mas o que eu quero dizer é que, numa relação específica, em especial àquela que provoca uma dose de sofrimento, muitas vezes não conseguimos nos desvencilhar. Queremos mudar, temos clareza que a pessoa nos faz sofrer (uma namorada, um amigo, etc), mas não conseguimos. Por que? Se todo vício traz em si a obtenção do prazer, onde há prazer nestes tipos de relacionamento? Freud já havia se ocupado disso ao tratar do masoquismo, mas não quero ir por essa via. Quero enfatizar que, em todo o relacionamento, há a obtenção de um benefício, por mais estranho que possa parecer. Voltando ao exemplo da pessoa submissa, ao se relacionar com alguém mais autoritário, ela se beneficia ao negligenciar a responsabilidade por sua própria vida. Chamamos esse fenomeno de “co-dependencia”, ou seja, a pessoa depende que seu parceiro seja do jeito que é para lhe poupar da árdua tarefa de rever suas crenças a respeito de si própria.

Mas e quanto às crenças que temos a nosso respeito? Em outras palavras, o que dizer sobre a forma com a qual nos tratamos? Isto também pode ser viciante. É comum encontrarmos pessoas que, mesmo que você fale de suas potencialidades, elas não conseguem vê-las e acabam até por discordar. Um elogio é sempre recebido com um “mas”. Os recursos da pessoa acabam sendo guardadas no quartinho de bagunça de sua vida e seus defeitos recebem destaque especial. Dois psicólogos australianos (David Epston e Michael White) trabalham com uma noção interessante. Eles dizem que as crenças problemáticas que temos a nosso respeito são “discursos dominantes”, ou seja, discursos que nos dominam e nos impedem de ver outras possibilidades já existentes em nós. Se somos viciados em certas formas de nos referirmos a nós mesmos, temos que mudar justamente estas formas discursivas. Incorporar outros repertórios neste discurso repetitivo acabaria por enfraquecer esta construção dominante.

Daí resulta, em grande parte, nossa dificuldade em mudarmos nossa visão de mundo. Para mudarmos, precisamos olhar a partir de outra perspectiva. Nem sempre é facil e demanda muito esforço. Um primeiro passo, penso eu, é reconhecermos os benefícios secundários que ganhamos ficando do jeito que estamos. O segundo passo é reconhecer se vale a pena manter estes mesmos benefícios.