Autor: Alexandre Mattos
Grupo de estudo Karen Horney – NOVO!
No mês de março, iniciaremos um de estudo sobre uma das obras mais importantes da psicanalista culturalista Karen Horney: NOVOS RUMOS NA PSICANÁLISE. Nesta obra, Horney realiza uma apreciação crítica sobre os conceitos freudianos, em especial às noções de pulsão e libido. Seu posicionamento teórico oferece uma compreensão do ser humano mais construtiva e otimista, abandonando a noção de pulsão e enfatizando a qualidade das relações interpessoais e a influência da cultura na gênese da neurose.
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Grupos de estudo Melanie Klein e Karen Horney
No mês de outubro, iniciaremos dois grupos de estudo sobre duas importantes teóricas da Psicanálise: Melanie Klein e Karen Horney. Partindo das teorizações freudianas, Klein desenvolveu toda uma metapsicologia sobre o universo mental infantil, dando ênfase às primeiras relações objetais. Considerada como uma revolucionária depois de Freud, suas ideias mostram grande aplicabilidade clínica na compreensão da neurose e psicose. Karen Horney, também partindo das ideias de Freud, propõe uma compreensão do ser humano mais construtiva e otimista, abandonando a noção de pulsão e enfatizando a qualidade das relações interpessoais e a influência da cultura na gênese da neurose.
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Respostas de Movimento Animal no Teste de Rorschach: uma compreensão sobre identificações infantis
A presença de respostas FM sugere demandas (necessidades e desejos) próprias de uma fase anterior no desenvolvimento infantil, fase esta em que a criança ainda não conseguiu alcançar um amadurecimento psicológico como vistos nas respostas M (movimento humano). Indica que o sujeito que produziu este tipo de resposta ainda encontra-se ligado às fantasias infantis de gratificação ou de frustração, o que confere a estas respostas um caráter mais imaturo. A questão que se coloca, num ponto de vista teórico, é por que as imagens infantis estariam associadas a um universo infantil, indicando, assim, maior imaturidade por parte do sujeito adulto.
Convém observarmos o quanto as crianças apreciam os desenhos infantis ou fábulas. Por que um filme, trazendo a mesma problemática abordada nestes desenhos, não teria o mesmo apelo infantil? Para respondermos a esta questão, temos que considerar o quão complexa é a vida de um adulto. Torna-se muito mais fácil e suportável para a criança identificar-se com o patinho feio e suas rejeições, do que um filme no qual mostraria com maior crueza as dificuldades das crianças.
Os animais figurados em desenhos animados têm reações mais previsíveis e menos complexas. Com efeito, podemos explicar os significados das figuras de animais no teste Rorschach (e também no TAT ou CAT), por meio do processo de identificação, que nas crianças ocorrem mais facilmente com animais do que com figuras humanas (BELLAK e ABRAMS, 1997).
Os argumentos extraídos da experiência clínica sugerem que relacionamentos afetivos com animais são mais fáceis de lidar pelas crianças e que os animais são frequentemente menores do que os adultos humanos. Vale ressaltar também que os animais desempenham um papel importante nas fobias infantis e como figuras de identificação em sonhos infantis (ver o caso do pequeno Hans, de Sigmund Freud). Num nível consciente, os animais são vistos como grandes amigos das crianças, o que corrobora com o argumento acima.
Outro fator importante na articulação entre identificação e figuras de animais se assenta na ideia de que animais ofereceriam disfarces mais eficazes em relação a impulsos mais hostis ou agressivos. Estes são mais facilmente atribuídos a um leão do que à figura de um pai, uma vez que este ultimo requer uma identificação mais completa (e mais próximo do que a criança vê em sua casa).
Quando elevadas, as respostas FM podem sugerir um funcionamento mais imaturo, na medida em que as necessidades não satisfeitas não sofrem a ponderação esperada de um adulto. Portanto, ainda no âmbito das identificações, a criança não internalizou a complexidade do existir humano, o que a impede de adiar satisfações, modular afetos e exercer a empatia (característica presente em sujeitos que produzem respostas de Movimento Humano).
Mas será que as identificações com animais, produzidas por um sujeito adulto, encerrariam um modo de ser imaturo, com demandas internas não satisfeitas? Diante da incidência deste tipo de resposta no Rorschach (frequente), um número reduzido é indicativo também de que o universo infantil, espontâneo e criativo ainda pulsa. Desta forma, torna-se saudável e previsível que um sujeito adulto forneça algumas respostas FM, pois elas também sinalizam aspectos mais espontâneos do universo infantil.
Por estarem associadas a um modo de funcionamento afetivo infantil, as respostas FM sinalizam uma menor integração e adaptação à realidade e menor capacidade de realização, embora apresente consciência do impulso para gratificação imediata (portanto, não sofreu ação maciça da repressão). Em outras palavras, quanto maior a distância da figura humana, maior a emergência da repressão do desejo e, portanto, de sua consciência. Trata-se de desejos parcialmente reprimidos, uma vez que o movimento animal ainda persiste.
No aspecto mais formal do Rorschach (ideação), os processos ideativos (julgamento e interpretação das experiências internas e externas) são provocados por estados de insatisfação de necessidades básicas, tanto primárias (fome, sede, etc), como secundárias (sucesso, prestígio, etc). Podemos relacionar estes estados a preocupações ou necessidades não gratificadas. Sua ausência não indica adaptação e saúde psíquica, pois ela pode indicar que o sujeito elimina o registro de tais necessidades. É muito diferente não sentir fome (satisfeita) ou não registrar a fome. Quando aumentado, o sujeito apresenta elevado desconforto interno, vistos por meio da falta de atenção e concentração, devido ao aumento a sobrecarga interna (EXNER e SENDIN, 1999).
Devemos sempre, como examinadores, atentar para os aspectos qualitativos da resposta, cuja análise se dará sobre o tipo de animal visto e o tipo de ação sinestésica (movimento), como por exemplo, “um lobo chorando” ou “uma leoa tricotando”. Ambos receberam uma docilização sobre o aspecto selvagem do animal, o que é indicativo de maiores investigações sobre processos repressivos associados à hostilidade (WEINER, 2000).
Para finalizar, vale a pena ressaltar que, independente da incidência de respostas FM, estamos diante de um sujeito desejante buscando ressignificação de suas demandas internas.
FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA TERAPIA DINÂMICA EM PSICOTERAPIA BREVE
INTRODUÇÃO
Os fundamentos teóricos que apresentamos a seguir e que norteiam esta prática de Psicoterapia Breve apoiam-se na Teoria psicodinâmica e interpessoal, cujo foco é a abordagem relacional. Por abordagem relacional queremos dizer que todas as dificuldades de uma pessoa foram construídas nos relacionamentos interpessoais, inicialmente na infância e posteriormente perpetuado por outras pessoas. Desta forma, a compreensão das dificuldades do paciente gira em torno da identificação de um padrão disfuncional de se relacionar com os outros e consigo próprio. A maneira de se relacionar com os outros é a raiz das dificuldades do paciente em relação também ao self (como se vê e se trata), contribuindo para um adequado ou inadequado funcionamento psicológico e consequente qualidade de vida.
As dificuldades de uma pessoa podem ser trabalhadas, num processo psicoterápico breve, por meio da identificação do que chamamos de Padrão Mal Adaptativo Cíclico (PMAC): uma estrutura narrativa que é usada para explicar como as dificuldades da vida do paciente são perpetuadas. Por isso, prestamos uma atenção particular ao que ocorre nos relacionamentos do paciente, passado e presente (incluindo a relação com o terapeuta), especialmente nos modos de se relacionar que são disfuncionais.
Como chegamos a desenvolver um padrão repetitivo de relacionamento?
DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE:
Personalidade, nesta abordagem, refere-se a padrões duráveis na forma de sentir, pensar e agir que são geralmente consistentes através do tempo e através de diferentes contextos. Conceituamos personalidade a partir de dois domínios, que tanto podem contribuir para um funcionamento saudável e adaptativo, como também podem contribuir para o sofrimento e dificuldades nos relacionamentos: Relacionamentos Interpessoais e Funcionamento do Self. Estes são elementos-chaves para a compreensão do desenvolvimento e disfunção da personalidade.
Relacionamentos interpessoais funcionais
Uma maneira madura de estabelecer relacionamentos interpessoais é marcada por:
a. Confiança de que as intenções, desejos e motivações dos outros podem ser benignas;
- Apreciação realista das intenções e motivações dos outros;
- Capacidade de criar interações positivas com os outros, como também estabelecer intimidade e oferecer apoio nas relações.
- Capacidade de estabelecer empatia e de olhar as situações de outra perspectiva (dos outros) que não a sua.
- Capacidade de ver os outros e a si próprio de maneira separada e multidimensional (atentar para a complexidade dos outros e de si próprio);
- Capacidade de ser flexível e colaborativo.
Self-funcional
Um funcionamento adaptativo vai depender de
- Uma sensação de self coerente, realista e estável ao longo do tempo;
- Capacidade de se autorregular, incluindo as emoções e formas de enfrentamento, controle dos impulsos e motivação.
Partimos da premissa de que as relações interpessoais com figuras significativas impactam a maneira de uma pessoa interagir com os outros e consigo própria.
Desde o nascimento tempos que lidar com duas forças motivacionais interatuantes: necessidade de vínculo e busca por independência. Estas duas forças fazem parte da condição humana e uma não exclui a outra. A todo o momento ocorre a dialética destas forças, o que permite que uma pessoa busque se vincular a alguém, sem que com isso perca sua sensação de self autônomo. Cooperação e intimidade nos relacionamentos dependem de uma genuína preocupação com o outro e um claro sentido de self.
A maneira como os cuidadores lidam com as necessidades da criança (vinculo) e seu movimento para a independência, influenciará a qualidade das representações de si e do outro ao longo da vida.
Internalização das experiências relacionais iniciais
Uma criança internaliza interações com os pais e estas se tornam representações mentais, ou seja, memórias, imagens, sons, sensações associadas às experiências pregressas. Estas representações incluem a percepção do self e do outro como uma díade, ligadas por uma emoção e uma crença/expectativa sobre o que ocorre entre duas pessoas.
Um exemplo simples: imaginem uma criança brincando livremente e contente com seus brinquedos enquanto sua mãe lê. Depois de um tempo, a criança fica entediada com o brinquedo e se aproxima da mãe para começar uma nova atividade ou brincadeira. A mãe, que está pronta para iniciar uma nova atividade com a criança, fica satisfeita pelo fato de ela ter se aproximado para uma nova interação. Os dois encontram então uma atividade prazerosa para ambos.
A representação mental desta experiência para a criança terá três componentes, embora seja única:
- REPRESENTAÇÃO DO SELF: a criança irá se ver como uma pessoa que sente necessidades e fica confortável em se aproximar do outro para satisfazê-las. A resposta da mãe indica que a criança é digna de respeito e interesse. A resposta da mãe (e de outros significativos) começa a indicar que tipo de pessoa a criança é. Em outras palavras, a criança aprende sobre si própria (self) como resultado das respostas dos outros às suas necessidades.
- REPRESENTAÇÃO DA MÃE: a mãe é representada como uma pessoa interessada, amorosa, capaz de satisfazer uma necessidade e satisfeita com a presença da criança.
- REPRESENTAÇÃO DA INTERAÇÃO: a interação é considerada satisfatória, com ambos capazes de dar e receber um do outro.
Representação Mental não são simplesmente memórias e não são construídos a partir de eventos únicos. Ela é uma síntese de experiências vividas com o outro no curso da vida. Esta síntese será uma espécie de template, esquema ou modelo que influenciará futuras experiências. Neste exemplo, se estas experiências forem constantes, a criança construirá uma fé na generosidade de outras pessoas, pois se aproximar delas será uma tarefa confortável em razão das experiências anteriores.
Uma forma de entendermos então o que seria uma Representação é pensá-la como Significados extraídos dessas experiências.
Certamente uma mãe não estará sempre disponível para a criança. Às vezes ela estará doente, com dor de cabeça, nervosa, preocupada, etc. A qualidade da interação dependerá do estado mental da criança e do outro significativo.
A falha humana em satisfazer nossas necessidades na infância faz parte de nosso desenvolvimento. No caso da mãe indisponível, a criança poderá procurar o pai para a interação saudável. Em outras palavras, as experiências com nossos pais não são de um tipo só (acolhedora). Estas experiências podem abarcar interações mais conflitantes. O que determinará um padrão ou representação hostil sobre determinada relação são as experiências subsequentes. Se a criança passar por experiências mais hostis, esta representação pode ter um poder de influência maior, ainda que no início ela tenha tido uma experiência favorável e amigável.
O inverso também é verdadeiro. Pessoas que cresceram num lar hostil podem reconstruir suas representações a partir de novas interações.
Outro fator importante no que diz respeito às Representações mentais é que elas não significados verídicos (como uma fotografia). Embora uma mesma mãe tenha três filhos, cada filho tem uma mãe diferente em razão das experiências e estados mentais distintos.
Lembrem-se então:
Uma representação (self-outro) não se constrói a partir de um evento singular, mas a partir de recorrências que acabam por dominar o campo de experiências da criança.
Estas representações contêm experiências relacionais como uma unidade. Não existe uma representação somente do self e outra somente do outro e outra somente da interação (foi explicado desta forma para fins didáticos). Sendo assim, num contexto de interação, uma pessoa pode assumir qualquer um dos papéis. Isto explica porque crianças que foram abusadas podem vir a se tornar abusadores, ou num contexto psicoterápico, entender como um paciente dependente e carente, pode se tornar dominador e rejeitar o terapeuta eventualmente. Na medida em que um esquema interpessoal é ativado, papéis podem ser trocados. Nós esperamos ser tratados da mesma forma com que fomos tratados no passado. Por outro lado, acabamos por nos tratar e tratar os outros também da mesma forma que fomos tratados. Isto ratifica a necessidade de olharmos as dificuldades do paciente sempre em termos relacionais.
PSICOPATOLOGIA
As bases sólidas de um desenvolvimento saudável e adaptativo da personalidade dependem de segurança, estabilidade, predição, amor e apoio; todas construídas nas relações com outros significativos (pais ou cuidadores). Quando a criança não encontra estas condições nas interações com os pais, desenvolvem-se então padrões de relacionamento disfuncionais.
As dificuldades de um paciente são consequências de distúrbios nas relações parentais. Pais imprevisíveis, emocionalmente contidos, negligentes e abusivos contribuem para o desenvolvimento de patologias nas relações interpessoais e no autoconceito (self). Experiências adversas podem deixar a criança vulnerável no que diz respeito à regulação emocional e funcionamento cognitivo.
Para sobreviver, crianças expostas a experiências relacionais dolorosas e conflitivas buscarão maneiras específicas de acomodar e lidar com traumas emocionais. Elas investem todas as suas forças tanto na autoproteção quanto na preservação de vínculos. Devido a dependência física e emocional que a criança tem em relação às figuras parentais, ela pode abrir mão de seus desejos e necessidades (autoproteção) para garantir que os pais não a abandonarão (preservação do vínculo). Esta manobra defensiva tácita se manifesta por meio da restrição da consciência (no sentido de autopercepção) e auto expressão, como também pela rigidez desenvolvida nos relacionamentos (ausência de flexibilidade).
Autoproteção: restrição da consciência e autoexpressão
Restringir a auto expressão e a autopercepção (consciência) é uma forma de acomodar as necessidades emocionais dos pais em detrimento das necessidades da criança: “vou ser o que os meus pais querem que eu seja”. Com isso a criança desenvolve uma falsa percepção de se próprio (em termos winnicottianos, falso-self). Abandona seus desejos e necessidades e com isso perde a possibilidade de desenvolver um senso de identidade coerente e estável, como também autoconfiança.
Todos nós, em alguma medida, renunciamos nossas expressões singulares para satisfazer as expectativas parentais. Num certo grau, isto ocorre com todos nós. Porém, se a criança não sente uma segurança para auto expressar-se, este tipo de renuncia se torna patológica e rígida, comprometendo assim sua autonomia e independência.
Autoproteção: rigidez na forma de se relacionar com os outros e consigo próprio.
Com uma base segura, uma criança se arrisca no relacionamento com os outros, geralmente esperando respostas positivas destes. Em contraste, uma criança com experiências interpessoais sem uma base de segurança, desenvolve uma prontidão para antecipar exatamente o tipo de respostas negativas que ela recebeu dos outros significativos em sua vida. Um sujeito adulto perdeu qualquer possibilidade de antecipar as reações dos outros de uma maneira positiva (hostilidade do mundo). Ao antecipar estas respostas negativas, o sujeito recria as experiências negativas desenvolvidas no passado. Trata-se de uma profecia que se auto cumpre.
Nós caracterizamos psicopatologia nas interações interpessoais por meio dos seguintes termos:
- Rigidez nos esquemas interpessoais: as expectativas e comportamentos que os outros manifestam sobre o sujeito refletem as expectativas e comportamentos das figuras parentais na vida infantil. Pais excessivamente críticos desenvolverão no sujeito uma apreensão de que todos não só esperam perfeição dele como de fato o criticarão frente a sua autoexpressão. Esta auto privação tem uma função defensiva, protegendo a si próprio contra qualquer possibilidade de vivenciar dor ou rejeição.
- Repertório interpessoal constrito: devido a rigidez acima, o sujeito não encontra outras possibilidades de interpretar as interações diferentemente daquelas vivenciadas nas suas relações pregressas. Isto contribui para a instalação de um ciclo interpessoal. Por exemplo, Pedro repetidamente se fecha e torna-se reservado, tímido e defensivo nas suas interações porque ele espera crítica e rejeição dos outros (não importando as circunstâncias). Por conseguinte, os outros acabam por se afastar de Pedro em razão de seu pouco investimento nas relações, fazendo com que ele se sinta rejeitado.
- Estresse crônico: efeito da rigidez descrita acima. Os esforços empreendidos para se proteger da dor ou preservar os vínculos podem elevar o grau de ansiedade, tristeza, desespero, agitação ou hostilidade.
PROCESSO TERAPÊUTICO
Com o intuito de evitar um excesso de patologização e demonização parental, vale apontar alguns cuidados:
- Todos nós, em alguma medida, passamos por experiências que interpretamos como negligentes por parte dos nossos pais. Uma necessidade não atendida, uma crítica descontextualizada, entre outros. O que tornará psicopatológico uma forma de interação dependerá da regularidade com que estas negligencias ocorreram.
- Quanto a demonização parental, convém ter em mente que estes pais também tiveram seus pais, que por sua vez podem ter sido negligentes a eles. Ninguém pode dar aquilo que não recebeu. Certamente existem pais que são humilhadores profissionais ou até mesmo torturadores. Mas muitos consideram que fizeram o que tinha que ser feito. Isto não serve para desresponsabilizá-los em suas obrigações como cuidadores e educadores, mas serve para recontextualizar seus papéis de pais limitados por circunstâncias de vida.
- Outro aspecto importante diz respeito às representações. Como vimos anteriormente, uma representação é co-construída na relação. Ao mesmo tempo em que os pais têm um papel significativo nesta construção, a criança também o tem. Sua sensibilidade, sua constituição biológica, suas inclinações, assumem influencia importante na construção destas representações. A título de exemplo, relatamos a queixa de um paciente sobre a negligencia de sua mãe para com ele. Quando criança, ele se aproximou da mãe e disse “mãe, quando eu mexo no meu braço, dói”. Ela prontamente lhe respondeu “não mexe então”. Certamente ele buscava um reasseguramento afetivo e a não resposta da mãe fez com que ele construísse esta representação. No entanto, hipoteticamente, podemos pensar que esta mãe, ao identificar certo “mimo” por parte do filho, decidiu deliberadamente tratar a questão da forma mais pragmática possível. Muito provavelmente porque assim ela aprendeu a lidar com suas necessidades afetivas.
Num processo terapêutico, o psicólogo deve estar atento a estes pontos e sempre levar em conta que qualquer manobra defensiva por parte do paciente trata-se de uma autoproteção contra qualquer possibilidade de dor.
Bibliografia
BINDER, J. L.; BETAN, J. E. Core Competencies in Brief Dynamic Psychotherapy: Becoming a Highly Effective and Competent Brief Dynamic Psychotherapist. Los Angeles: Routledge, 2012.
GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
HORNEY, K. A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
MATTOS, A. P. D. Insegurança e Crmiminalidade Urbana: um estudo sobre estratégias midiáticas em telejornais. PUC-SP. São Paulo, p. 157. 2010.
Reportagem “Entre tapas e beijos” na revista Gloss
Trilhando Novos Sentidos sobre a Adversidade
Acredito que uma das fontes de inquietação de muitas pessoas que procuram uma psicoterapia, além do sofrimento vivido, é a percepção do quanto esse sofrimento é recorrente, repetido. Enfim, um desagradável e constante visitante. Afinal de contas, se conseguimos perceber o que nos faz sofrer, por que não interrompemos sua ação? Por que ainda assim nos flagramos em autoboicotes e recorremos à mesma forma distorcida de interpretar nossas experiências humanas? Embora existam inúmeras explicações teóricas para esta repetição, e posso mencionar o clássico texto de Freud “Recordar, repetir e elaborar”, gostaria de propor uma leitura diferente, menos rigorosa e talvez mais ingênua. Peço que me acompanhem na analogia a seguir… Vejam a imagem ao lado. Trata-se de uma trilha. Mas como se forma uma trilha? Há necessariamente que alguém faça esse caminho pela primeira vez. Depois esse alguém precisa voltar a fazer esse caminho várias vezes (ou outras pessoas) para que, com o tempo, comece a se delinear uma trajetória, um esboço de passagem em meio a uma plantação densa. Quanto à sua natureza, esta plantação pode ser mato fechado, com ou sem espinhos, seca, úmida. De tanto passar por lá, o contraste se forma lentamente. Alí há um caminho antes inexistente. Não foi da noite para o dia. A trilha, já formada, é um convite para cortar caminho, para seguir adiante.
Os sentidos que atribuímos às nossas experiências assemelham-se a essa trilha. Como os sentidos são construídos nas relações sociais, é justo dizer que nunca caminhamos nessa trilha sozinhos. Como vocês já podem antever, existem trilhas e trilhas. Algumas delas foram construídas passando por espinhos e adversidades. O problema é que muitas vezes, de tanto construir e passar por ela, perdemos de vista a possibilidade de construir novos caminhos. Ou porque não há ninguém que nos ajude a vislumbrar essa possibilidade, ou porque estamos habituados a isso.
Mas não quero dizer que o sofrimento é simplesmente um hábito (embora para alguns possa ser). Quero simplesmente dizer que atribuímos os mesmos sentidos às nossas experiências (percorrer a mesma trilha) porque não conseguimos fazer diferente. O que eu quero é passar e lá há um caminho, o único no momento.
O ponto que eu quero chegar é que nos colocamos reiteradamente em situações que nos fazem sofrer, não por um prazer ou gozo masoquista (ou como dizem por aí, “por gostar de sofrer”), mas porque ao passar pelo sofrimento, somos acompanhados também pela esperança de que alguém nos ajude a “desviar” desse caminho de chão tão pisado. A repetição bem sucedida denuncia o fracasso desta tentativa, a não ser que novas relações produzem novos sentidos (novos desvios da trilha). Aí está a esperança por traz da repetição. Não é gozo, é esperança.
Como nos lembra Victor E. Frankl, autor do livro “Em Busca de Sentido”, o que o ser humano necessita não é a descarga de tensão a qualquer custo, mas antes o desafio de um sentido em potencial à espera de seu cumprimento.
Às vezes o inferno cai sobre as nossas cabeças sem aviso prévio. Mas precisamos estar atentos para não permanecermos nele. Em outras palavras, devemos deixar de “esperar” que o inferno nos abandone por conta própria para estar a “espreita” de novas trilhas que podem ser construídas.
A Empatia na Medida Certa
Não há quem discorde que uma relação mais humana é aquela em que há empatia. No dicionário Houaiss, empatia é descrita como a faculdade de compreender emocionalmente um objeto. No senso comum, trata-se de se “colocar no lugar do outro” para apreender o universo de sentido a partir de uma perspectiva diferente da sua. É isso que falta ao perverso e o que sobra àquele que se perde nas turbulências emocionais do outro. Tudo indica, então, que a saída seria encontrar a justa medida. Como entrar no lugar do outro e não se perder nele? Convém lembrarmos que a empatia só é possível quando nos identificamos com ele. Mas e o inverso? A frieza ou objetividade exacerbada não estaria ligada ao fato de que também nos reconhecemos nesse outro, e talvez justamente por isso criamos esse anteparo? Nestes últimos dois dias percorri estes dilemas através de duas situações cotidianas. Como Psicólogo, minha função é escutar o sofrimento alheio e procurar, na medida do possível, ajudar a pessoa a encontrar sentido onde não há. Nesta semana atendi uma senhora que estava totalmente destruída pelos sintomas que a acometiam. A depressão grave dilacerava aos poucos qualquer recurso resiliente que ela pudesse por em prática. O aprisionamento em que estava aumentava ainda mais seu sentimento de impotência. Seus pensamentos eram desconexos, suas emoções eram descontroladas e o terror a acompanhava durante toda a conversa que procurei desenvolver com ela. Impossível não se deixar tocar por aquele sofrimento. Coloquei-me em seu lugar e por um momento também me senti impotente. Mas tão logo me dei conta disso, voltei para o meu mundo mental e comecei a pensar sobre o que lhe ocorria. Afinal, o que a nossa profissão demanda é pelo menos desenvolver a capacidade de pensar diante de fortes emoções. A viagem empática fora demasiadamente forte, mas necessária para o desenvolvimento da compaixão. No dia seguinte, estava fumando com um amigo na calçada, quando se aproximou um jovem, com relativa boa aparência, cabelos cortados, procurando ser demasiadamente simpático. Ele nos abordou e perguntou “me dá um cigarro?”. Constrangido pela situação, e por também achar que ele estava alterado, disse “não”. Na hora atuei o incomodo que a abordagem produziu, mas confesso que minha negativa nada teve a ver com alguma preocupação com a saúde do rapaz. Tentei até me convencer desta preocupação social, mas não era o caso. O caso era simples. Não queria dar o cigarro. Meu amigo, muito sensibilizado pela situação (tal qual eu fiquei com o atendimento psicológico) me disse que não havia concedido o cigarro simplesmente por que não o tinha. Lembro-me do rosto do rapaz, desconcertado e excluído continuando o seu caminho. Aí eu me enxerguei nele mas não dava mais tempo. Culpa? Com certeza. Mas a questão principal foi outra. Porque conseguimos desenvolver compaixão por uns e não por outros? O problema é que nos identificamos tanto com aquele que nos despertou interesse, quanto com aquele que desprezamos. Nos vemos nessas pessoas. O problema é que a pessoa excluída nos oferece possibilidade de nos reconhecermos no nosso pior, na nossa fragilidade, na nossa dependência, nos nossos vícios e nas nossas misérias. Voltando a minha pergunta inicial: como atingir a justa medida? Não tenho uma resposta pronta, mas me parece que o caminho é poder reconhecer o que queremos expurgar em nós.Que tanto os que incluímos, quanto os que excluímos, ambos falam sobre nós e para nós. Eu não dei o cigarro ao rapaz, mas ele me proporcionou, juntamente com o meu amigo, esta reflexão. Foi a tragada mais amarga e doce da semana.
Quanto vale uma psicoterapia?

O quanto a pessoa dispõe para pagar sua terapia pode estar ligada a várias questões. Somos seres humanos complexos e, portanto, não há como esgotar todas as possibilidades que o dinheiro pode significar nesta hora. Mas certamente algumas podemos exemplificar. O dinheiro pode estar ligado ao investimento que a própria pessoa reconhece que merece. Ou seja, a manifestação de um cuidado sobre si mesmo. Outra possibilidade é o lugar que este terapeuta ocupa neste processo. Qual o seu valor como pessoa e como profissional. Quando falo deste “lugar”, me refiro também a um lugar simbólico: de cuidador, de acolhedor, de alguém que aposta em nosso crescimento. Estes exemplos não devem ser entendidos como regras, pois uma pessoa que se disponibiliza a pagar um valor inferior não necessariamente se vê como indigna de investimento e muito menos que o terapeuta não o mereça. O que trago para a discussão é que a questão do dinheiro está além dos cálculos monetários.
Mas estas questões não são privilégios dos clientes. Psicoterapeutas também podem ter dificuldade em lidar com o dinheiro, e este dilema, como é para o cliente, possui contornos simbólicos. O valor que ele cobra pode estar ligado a questões também concretas: seu comprometimento com a não elitização da terapia e a uma necessidade de aumentar sua lista de clientes. Mas pode falar também do valor que ele atribui a si próprio enquanto pessoa e profissional que é.
Mas o significado atribuído no processo de pagamento/recebimento extrapola generalizações. Este precisa ser entendido na relação específica entre cliente e psicoterapeuta, o que torna esta questão ainda mais complexa. Muitas vezes o psicoterapeuta, se não estiver muito atento, pode contribuir para a manutenção de uma forma específica do cliente se relacionar com as pessoas. O terapeuta pode vir a sentir pena, ter grande admiração, ser condescendente, ser duro, etc. E isto só pode ser entendido na especificidade deste encontro.
Há outro elemento que está envolvido neste processo e este diz respeito a questões de mérito. Do mesmo jeito que uma pessoa não inicia sua terapia por ser inviável financeiramente, o inverso é verdadeiro. “Se cobra pouco, não deve ser bom”. Isto se dá em razão de vivermos tempos em que a imagem é tudo. Os valores das pessoas se confundem com valores monetários. Dinheiro passa a ser sinônimo de eficiência. Certamente esta compreensão deve ser um dos focos de trabalho, mas isso só será possível de ser discutido se o cliente “suspender” essa forma de ver a situação e apostar no processo. O tempo vai dizer.
O dinheiro, em contextos psicoterápicos, possui conotações morais fortes. Se todos nós, tanto psicoterapeutas e clientes, considerarmos que nossas compreensões acerca destas questões são versões temporárias e não conclusões definitivas, podemos nos desarmar e apostar no diálogo franco e sincero. O dinheiro pode se converter num aliado simbolicamente importante, e isto independe da concretude de seu valor.
É possível viciarmos em certos relacionamentos?
Certa vez vi na televisão uma definição sobre “vício” que me fez pensar e posteriormente concordar: vício é tudo aquilo do qual não conseguimos parar. Fica claro se esta definição for aplicada sobre o uso abusivo de substâncias psicotrópicas, drogas lícitas e ilícitas e jogos. Mas não seria plausível persarmos também que podemos nos viciar em certos tipos de relacionamentos, inclusive aquele que estabelecemos com a gente mesmo? Parece-me que sim.
A maioria das pessoas já deve concordar que todo o vício dá prazer, a despeito dos efeitos nocivos posteriores que ele acarreta. Mas durante o uso de qualquer substancia ou prática, o prazer é conquistado. Nos sentimos outra pessoa e usufruimos da intensidade desta experiência. Mas quando nos referimos a relacionamentos humanos, a situação é um pouco mais complexa.
Por meio do processo de socialização, começamos a construir sentidos sobre o mundo e sobre nós mesmos. Nossas ações ganham significado e a noção de quem somos enquanto pessoa começa a ganhar forma. Ninguém se define sozinho e nosso interlocutor, principalmente àqueles que desenvolvemos certo grau de confiança, assumem um papel importante nesta construção. Porém, ao longo de nossa trajetória, ficamos presos em alguns significados construídos nesses encontros sociais. Passamos a estabelecer relacionamentos com certos tipos de pessoas que irão desempenhar certos papéis. Uma pessoa, que se vê como submissa, passa a querer se relacionar com alguém mais autoritário, mais autônomo. Outra pessoa, cuja imagem que tem de si própria não é satisfatória, pode se vincular a pessoas que venham a enfatizar sua inferioridade. Sei que os exemplos são simples e banais e não daria para esgotar todas as possibilidades aqui. Mas o que eu quero dizer é que, numa relação específica, em especial àquela que provoca uma dose de sofrimento, muitas vezes não conseguimos nos desvencilhar. Queremos mudar, temos clareza que a pessoa nos faz sofrer (uma namorada, um amigo, etc), mas não conseguimos. Por que? Se todo vício traz em si a obtenção do prazer, onde há prazer nestes tipos de relacionamento? Freud já havia se ocupado disso ao tratar do masoquismo, mas não quero ir por essa via. Quero enfatizar que, em todo o relacionamento, há a obtenção de um benefício, por mais estranho que possa parecer. Voltando ao exemplo da pessoa submissa, ao se relacionar com alguém mais autoritário, ela se beneficia ao negligenciar a responsabilidade por sua própria vida. Chamamos esse fenomeno de “co-dependencia”, ou seja, a pessoa depende que seu parceiro seja do jeito que é para lhe poupar da árdua tarefa de rever suas crenças a respeito de si própria.
Mas e quanto às crenças que temos a nosso respeito? Em outras palavras, o que dizer sobre a forma com a qual nos tratamos? Isto também pode ser viciante. É comum encontrarmos pessoas que, mesmo que você fale de suas potencialidades, elas não conseguem vê-las e acabam até por discordar. Um elogio é sempre recebido com um “mas”. Os recursos da pessoa acabam sendo guardadas no quartinho de bagunça de sua vida e seus defeitos recebem destaque especial. Dois psicólogos australianos (David Epston e Michael White) trabalham com uma noção interessante. Eles dizem que as crenças problemáticas que temos a nosso respeito são “discursos dominantes”, ou seja, discursos que nos dominam e nos impedem de ver outras possibilidades já existentes em nós. Se somos viciados em certas formas de nos referirmos a nós mesmos, temos que mudar justamente estas formas discursivas. Incorporar outros repertórios neste discurso repetitivo acabaria por enfraquecer esta construção dominante.
Daí resulta, em grande parte, nossa dificuldade em mudarmos nossa visão de mundo. Para mudarmos, precisamos olhar a partir de outra perspectiva. Nem sempre é facil e demanda muito esforço. Um primeiro passo, penso eu, é reconhecermos os benefícios secundários que ganhamos ficando do jeito que estamos. O segundo passo é reconhecer se vale a pena manter estes mesmos benefícios.