É possível viciarmos em certos relacionamentos?

Certa vez vi na televisão uma definição sobre “vício” que me fez pensar e posteriormente concordar: vício é tudo aquilo do qual não conseguimos parar. Fica claro se esta definição for aplicada sobre o uso abusivo de substâncias psicotrópicas, drogas lícitas e ilícitas e jogos. Mas não seria plausível persarmos também que podemos nos viciar em certos tipos de relacionamentos, inclusive aquele que estabelecemos com a gente mesmo? Parece-me que sim.

A maioria das pessoas já deve concordar que todo o vício dá prazer, a despeito dos efeitos nocivos posteriores que ele acarreta. Mas durante o uso de qualquer substancia ou prática, o prazer é conquistado. Nos sentimos outra pessoa e usufruimos da intensidade desta experiência. Mas quando nos referimos a relacionamentos humanos, a situação é um pouco mais complexa.

Por meio do processo de socialização, começamos a construir sentidos sobre o mundo e sobre nós mesmos. Nossas ações ganham significado e a noção de quem somos enquanto pessoa começa a ganhar forma. Ninguém se define sozinho e nosso interlocutor, principalmente àqueles que desenvolvemos certo grau de confiança, assumem um papel importante nesta construção. Porém, ao longo de nossa trajetória, ficamos presos em alguns significados construídos nesses encontros sociais. Passamos a estabelecer relacionamentos com certos tipos de pessoas que irão desempenhar certos papéis. Uma pessoa, que se vê como submissa, passa a querer se relacionar com alguém mais autoritário, mais autônomo. Outra pessoa, cuja imagem que tem de si própria não é satisfatória, pode se vincular a pessoas que venham a enfatizar sua inferioridade. Sei que os exemplos são simples e banais e não daria para esgotar todas as possibilidades aqui. Mas o que eu quero dizer é que, numa relação específica, em especial àquela que provoca uma dose de sofrimento, muitas vezes não conseguimos nos desvencilhar. Queremos mudar, temos clareza que a pessoa nos faz sofrer (uma namorada, um amigo, etc), mas não conseguimos. Por que? Se todo vício traz em si a obtenção do prazer, onde há prazer nestes tipos de relacionamento? Freud já havia se ocupado disso ao tratar do masoquismo, mas não quero ir por essa via. Quero enfatizar que, em todo o relacionamento, há a obtenção de um benefício, por mais estranho que possa parecer. Voltando ao exemplo da pessoa submissa, ao se relacionar com alguém mais autoritário, ela se beneficia ao negligenciar a responsabilidade por sua própria vida. Chamamos esse fenomeno de “co-dependencia”, ou seja, a pessoa depende que seu parceiro seja do jeito que é para lhe poupar da árdua tarefa de rever suas crenças a respeito de si própria.

Mas e quanto às crenças que temos a nosso respeito? Em outras palavras, o que dizer sobre a forma com a qual nos tratamos? Isto também pode ser viciante. É comum encontrarmos pessoas que, mesmo que você fale de suas potencialidades, elas não conseguem vê-las e acabam até por discordar. Um elogio é sempre recebido com um “mas”. Os recursos da pessoa acabam sendo guardadas no quartinho de bagunça de sua vida e seus defeitos recebem destaque especial. Dois psicólogos australianos (David Epston e Michael White) trabalham com uma noção interessante. Eles dizem que as crenças problemáticas que temos a nosso respeito são “discursos dominantes”, ou seja, discursos que nos dominam e nos impedem de ver outras possibilidades já existentes em nós. Se somos viciados em certas formas de nos referirmos a nós mesmos, temos que mudar justamente estas formas discursivas. Incorporar outros repertórios neste discurso repetitivo acabaria por enfraquecer esta construção dominante.

Daí resulta, em grande parte, nossa dificuldade em mudarmos nossa visão de mundo. Para mudarmos, precisamos olhar a partir de outra perspectiva. Nem sempre é facil e demanda muito esforço. Um primeiro passo, penso eu, é reconhecermos os benefícios secundários que ganhamos ficando do jeito que estamos. O segundo passo é reconhecer se vale a pena manter estes mesmos benefícios.

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